Comentávamos em
circulo íntimo o inquietante enigma da obsessão na Terra, alinhando
observações e apontamentos.
Porque motivo se
empenham criaturas encarnadas e desencarnadas em terríveis duelos no
santuário mental? Que a vítima arrancada ao corpo, em delito
recente, prossiga imantada ao criminoso, quando a treva da ignorância
lhe situa o espírito a distância do perdão, é compreensível, mas
como interpretar os processos de metodizada perseguição no tempo?
Como entender o ódio
de certas entidades, em torno de crianças e jovens, de enfermos e
velhinhos? Por que a ofensiva persistente dos gênios perversos,
através de reencarnações numerosas e incessantes?
No mundo, os
assalariados do mal comprometem-se ao redor de escuros objetivos...
Há quem se renda às
tentações do dinheiro, do poder político, das honras sociais e dos
prazeres subalternos, mas em derredor de que razões lutam as almas
desenfaixadas da carne se para elas semelhantes valores convencionais
de posse não mais existem?
Longa série de
“porquês” empolgava-nos a imaginação, quando Menés, otimista
ancião do nosso grupo, à maneira de carinhoso avô, falou bem
humorado:
_ A propósito do
assunto, contarei a vocês um apólogo que nos pode conferir alguma
ideia acerca do nosso imenso atraso moral.
E, tranquila,
narrou:
_ Em épocas
recuadas, numa cidade que os séculos já consumiram, os bois
sentiram que também eram criaturas feitas por nosso Pai Celestial,
não obstante inferiores aos homens.
Sentindo essa
verdade, começaram a observar a crueldade com que eram tratados. O
homem que, pela coroa de inteligência, devia protegê-los e
educá-los, deles se valia para ingratos serviços de tração, sob
golpes sucessivos de aguilhões e azorragues. Não se contentando com
essa forma de exploração, escravizava-lhes as companheiras,
furtando-lhes o leite dos próprios filhos, reservando-lhes à
família e a eles próprios horrível destino no açougue, Se alguns
deles hesitavam no trabalho comum, sofrendo com a tuberculose ou com
a hepatite, eram, de pronto, encaminhados à morte e ninguém lhes
respeitava o martírio final. Muitas pessoas compravam-lhes as
vísceras cadavéricas ainda quentes, tostando-as ao fogo para
churrascos alegres, enquanto outras lhes mergulhavam os pedaços
sangrentos em panelas com água temperada, convertendo-os em
saborosos quitutes para bocas famintas. Não conseguiam nem mesmo o
direito à paz do túmulo, porque eram sepultados, aqui e ali, em
estômagos malcheirosos e insaciáveis. Apesar de trabalharem
exaustivamente para o homem, não conseguiam a mínima recompensa, de
vez que, depois de abatidos, eram despojados dos próprios chifres e
dos próprios ossos, para fortalecimento da indústria... Magoados e
aflitos, começaram a reclamar; contudo, os homens, embora portadores
de belas virtudes potenciais, receavam viver sem o cativeiro dos
bois. Como enfrentarem, sozinhos, as duras tarefas do arado? Como
sustentarem a casa sem o leite?
Como garantirem a
tranquilidade do corpo sem a carne confortadora dos seres bovinos?
O petitório era
simpático, mas os bichos se mostravam tão nédios e tão tentadores
que ninguém se arriscava à solução do problema. Depois de
numerosas súplicas sem resposta, as vítimas da voracidade humana
recorreram aos juízes; entretanto, os magistrados igualmente
cultivavam a paixão do bife e do chouriço e não sabiam servir à
Justiça, sem as utilidades do leite e do couro dos animais. Assim, o
impasse permaneceu sem alteração e qualquer touro mais arrojado que
se referisse ao assunto, a destacar-se da subserviência em que se
mantinha o rebanho, era apedrejado, espancado e conduzido,
irremediavelmente, ao matadouro...
O venerável amigo
fez longa pausa e acrescentou:
_ Essa é a luta
multissecular entre encarnados e desencarnados que se devotam ao
vampirismo. Sem qualquer habilitação para a vida normal, fora do
vaso físico, temem a grandeza do Universo e recuam apavorados, ante
a glória do Espaço Infinito, procurando a intimidade com os irmãos
ainda envolvidos na carne, cujas energias lhes constituem precioso
alimento à ilusão. E desse modo que as enfermidades do corpo e da
alma se espalham nos mais diversos climas. Os homens, que se julgam
distantes da harmonia orgânica sem o sacrifício dos animais, são
defrontados por gênios invisíveis que se acreditam incapazes de
viver sem o concurso deles. O enigma da obsessão, no fundo, é
problema educativo.
Quando o homem
cumprir em si mesmo as leis superiores da bondade a que teoricamente
se afeiçoa, deixará de ser um flagelo para a Natureza,
convertendo-se num exemplo de sublimação para as entidades
inferiores que o procuram... Então, a consciência particular
inflamar-se-á na luz da consciência cósmica e os tristes
espetáculos da obsessão recíproca desaparecerão da Terra... Até
lá – concluiu, sorrindo –, reclamar contra a atuação dos
Espíritos delinquentes, conservando em si mesmo qualidades talvez
piores que as deles, é arriscar-se, como os bois, à desilusão e ao
espancamento. O ímã que atrai o ferro não atrai a luz. Quem devora
os animais, incorporando-lhes as propriedades ao patrimônio
orgânico, deve ser apetitosa presa dos seres que se animalizam. Os
semelhantes procuram os semelhantes. Esta é a Lei.
Afastou-se Menés,
com a serenidade sorridente dos sábios, e a nossa assembleia, dantes
excitada e falastrona, calou-se, de repente, a fim de pensar.
Extraído do livro Contos e Apólogos
Psicografado por Francisco Cândido Xavier pelo Irmao X
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